Acordou. Não sabia onde estava e nem conseguia enxergar nada. Estava escuro. Escutava ao longe o choro de uma criança. Pouco depois, um cachorro começou a latir. Não se lembrava de nada. Sentia cheiro de álcool misturado a sangue, vômito e mofo. Teria bebido? Não sabia. Tentou chamar por alguém, mas a voz não saiu.
Levantou-se. Tentou, mas a perna não obedeceu. Colocou as mãos nela e descobriu de onde vinha o cheiro de sangue. Não conseguia ver, mas parecia que o estrago era feio. Não sentia dor. Tentou se arrastar até encontrar uma parede. Esbarrou em uma garrafa de vidro que saiu rolando. Encontrou algo que parecia ser o degrau de uma escada. Alcançou o corrimão e tentou mais uma vez ficar em pé. Conseguiu.
Subiu mais um degrau. O choro e o latido pareciam vir de fora daquele lugar. Seja lá o que fosse aquele lugar. Subiu mais um degrau. O piso de madeira não parecia ser muito resistente, mas era a única saída.
Chegou ao topo da escada. Tateou as paredes à procura de um interruptor. Encontrou algo melhor. Uma maçaneta. Estaria trancada? Hesitou um pouco e girou. Ouviu a porta ranger, dando a entender que sua passagem havia sido autorizada.
Ao abrir a porta, seus olhos foram invadidos por um enorme clarão. Uma surpreendente luz branca diferente das trevas às quais já estava se habituando. Aos poucos, a luz vazia dava lugar a formas e cores. Havia recuperado a visão. Rapidamente, olhou para sua perna. Mas, em seguida, desejou que não tivesse feito isso. Era como se um trator tivesse passado por cima do seu joelho. Não sentia dores, mas também não conseguia mexê-la.
Não ouvia mais nem a criança e nem o cachorro. Deu uma olhada em volta. Parecia ser a sala de uma casa. Dois sofás verdes e um tapete marrom compunham a decoração. Ao fundo, uma estante cheia de livros e porta-retratos. Tentou encontrar algum rosto conhecido nas fotografias, sem sucesso. Ao lado da estante, um relógio. Logo se deu conta que o tic-tac era o único som que ouvia. Na outra parede, avistou um espelho.
Decidiu mover-se para a frente dele, a fim de ver seu reflexo. Tomou um susto com o que apareceu. Não pelos hematomas e cortes que o rosto apresentava. Mas porque não era aquele rosto que costumava ver quando se olhava no espelho. Tentou se aproximar. Não era possível. O olho roxo deveria estar afetando sua visão.
Chegou mais perto do espelho, na esperança de se reconhecer naquela imagem. Não era o que acontecia. Quanto mais perto chegava, mais certeza tinha de que aquela imagem não era sua.
Olhou bem para aquele reflexo que usurpava sua imagem. Tentou se reconhecer ali. Mas aqueles olhos não eram seus. A boca não era sua. Nem mesmo a perna destroçada lhe pertencia. De repente, não parecia importante saber onde estava ou o que tinha acontecido. Isso tudo parecia trivial perto de uma questão muito mais fundamental: "quem sou eu?"