Ninguém estava lá para saber quais foram suas últimas palavras...
Uma história de ficção é, superficialmente falando, uma mentira que o autor conta ao leitor. A intenção não é fazer o leitor assumir aquela trama como algo que aconteceu de verdade, mas é fundamental que ela tenha o mínimo de coerência com as regras estabelecidas pelo seu próprio universo. A palavra-chave aqui é "mínimo". Afinal, é quase impossível criar uma história livre de qualquer tipo de contradição.
Apesar de seu um defeito da trama que pode prejudicar a suspensão de descrença do leitor, não acho essas contradições do todo ruim. É claro que, se vier em excesso, prejudica a qualidade da obra. Mas em pequenas doses pode gerar especulações e discussões sadias, que ajudam a manter a trama viva.
Pegando o exemplo do próprio "Cidadão Kane" - lustrado pela foto aí em cima: A espinha dorsal do filme é a busca pelo significado de "rosebud", últimas palavras do cidadão epônimo. O problema é que, ao dar seu último suspiro, Charles Foster Kane está sozinho. Não há ninguém por perto para saber quais foram suas últimas palavras. Isso é uma falha de roteiro, mas que de maneira nenhuma compromete o filme como um todo. Não vamos condenar o trabalho todo por um detalhe tão besta. Talvez alguém tenha ouvido, mas não foi mostrado no filme... e que venham inúmeras explicações sobre quem é essa pessoa e em que circustâncias se deu esse processo. Talvez, se Cidadão Kane tivesse uma continuação, essa cena sofresse com um retcon.
Plot holes são apenas contradições que não foram explicadas. Não que dizer que não exista nenhuma explicação plausível para elas.
Além disso, o diagnóstico de um "plot hole" varia muito dependendo no nível de suspensão de descrença que o trabalho exige daqueles estão acompanhando. Por exemplo, quando o Coiote, em uma de suas inúmeras tentativas frustradas de alcançar o Papa Léguas, despenca do alto de um penhasco, cai em cima de um cactus, termina esmagado por uma rocha e volta no próximo ato sem nenhum hematoma, ponto para por em prática seu novo plano, não consideramos isso um "plot hole". Mesmo que não haja uma explicação para essa incrível recuperação, isso é uma constante nos episódios do desenho. Você sabe que, por mais dolorosas que pareçam, essas adversidades não comprometerão a integridade física do pobre animal.
Porém, se algum dos personagens de "Cidadão Kane" passasse por essa mesma via crucis e retornasse logo em seguida sem nenhuma sequela e sem que nenhuma explicação plausível fosse dada, isso provavelmente comprometeria sua suspensão de descrença. Afinal, são dois trabalhos diferentes, com propostas diferentes e que não são regidos pelas mesmas leis.
Pessoalmente, eu acredito que não existam "histórias ruins". O que existem são maneiras ruins de se contar uma história. É claro que eu não gosto de todas as histórias que já foram escritas pela humanidade, mas entre não gostar de um produto e reconhecê-lo como ruim vai um longo abismo - e mesmo os que eu considero ruins, reconheço que o problema está mais na forma do que no conteúdo. Plot holes são meras indicações de que tem algo errado com a história. Isso não quer dizer que não possam ser tratados ou até mesmo usados a seu favor.
(Dei uma divagada nesse último parágrafo, mas faz muito tempo que gostaria de escrever sobre essa visão de que não existem "histórias ruins". O problema é que ela é mais confusa do que realmente parece, pois tem mais a ver com "potencial" do que "produto final". E não descata que existam trabalhos "ofensivos", "prejudiciais" ou "de moral torta", mas eu geralmente não associo esse rótulos à qualidade - embora concorde que são passíveis de crítica. Enfim, é bem complicado e, talvez um dia eu crie coragem para expor essa ideia em texto. Mas não hoje, nem agora.)
A propósito: de onde ele tira essas placas?