Talvez eu devesse ter escrito esse texto antes de começar a me meter a comentar sobre ficção. Infelizmente, retcons não são possíveis na vida real, o que significa que esse texto - que daria uma bela introdução ao assunto - será nosso capítulo 3. Enfim, chega de lamentações. Porque, excepcionalmente, hoje vamos falar de coisa boa...
Não creio que isso seja necessário, mas não custa lembrar: tudo que eu escrevo aqui é apenas uma opinião minha. E eu sou apenas um admirador da ficção, sem nenhum tipo de estudo sobre o assunto e sem talento para produzir algo de qualidade. O que listarei aqui são elementos que gosto de encontrar em uma obra e que ajudam a me interessar pelo seu conteúdo.
Nenhum deles garante qualidade. Só aumentam as chances de eu gostar do trabalho.
5. Metalinguagem:
Todo mundo sabe que uma história de ficção não é real. Se fosse o caso, ela não seria chama de "história de ficção". Às vezes, até os próprios personagens da trama estão cientes disso. E esse é o primeiro item da lista (ou quinto, considerando que estou fazendo uma contagem regressiva).
Ok, não precisamos chegar ao nível exagerado de "O Mundo de Sofia", que é praticamente construído em cima dessa ideia (e que é ótimo, não apenas por isso), mas, de vez em quando, derrubar a quarta parede pode arejar um pouco o ambiente, sem fazer com que a trama perca completamente sua credibilidade (sim, pois esse é um efeito colateral perigoso se usarmos esse elemento em altas doses).
Um dos meus exemplos favoritos é o filme "Pânico", essa cena em paticular:
O filme continua sendo um filme de terror "legítimo". As pessoas morrem de verdade e o assassino é considerado uma ameaça real. Mesmo assim, não deixa de pontuar os clichês que costumam aparecer nas produções desse gênero - no próprio filme inclusive. É uma forma de explorar a expectativa do público.
(Além disso, é uma maneira de neuralizar possíveis críticas a obra. Como é que alguém vai criticar "Pânico" por ser recheado de clichês sendo que o próprio filme reconhece e satiriza essa característica? É uma forma de dizer aos críticos "arranjem outro motivo para falar mal").
Eu poderia listar inúmeros outros exemplos, mas no fim, acabariamos tendo uma lista infinita, constando quase todas as minhas histórias preferidas...
4. Referências
De certo modo, este tópico está relacionado ao anterior. Citar um trabalho dentro de outro pode ser uma forma de quebrar a quarta parede - no exemplo anterior, os personagens de "Pânico" discutem sua situação enquanto assistem "Halloweeen".
Mas esse caso é um pouco mais sutil. Basta apenas repetir uma frase famosa do outro trabalho em questão - de modo que faça sentido dentro do contexto - para ganhar pontos comigo. Aliás, quanto mais inesperada e obscura for a referência, melhor. (Sim, porque de certo modo, alguns trabalhos já foram referenciados tantas vezes que hoja já não tem mais graça. "Star Wars", por exemplo. Provavelmente o roteiro todo da trilogia original já deve ter sido repetido em trabalhos posteriores, ao ponto em que isso já nem chega a surpreender - se bem que eu gostei da maneira como esse recurso foi utilizado em "Toy Story 2" - acho que é o 2).
Tentei encontrar um dos meus exemplos favoritos de referência, mas não encontrei. Era um desenho animado (não me lembro qual) que citava uma variação da clássica frase de Hannibal "me fale das ovelhas, Clarice!"
Convenhanos, o fato de um desenho possivelmente voltado para crianças referenciar um filme que conta com um psiquiatra canibal e um serial killer transexual é daquelas coisas incríveis demais para deixar passar. É uma pena que minha memória parece não concordar...
3. Múltiplos protagonistas:
Não que eu não possa gostar de histórias com apenas um protagonista. Afinal, isso excluíria quase toda ficção já produzida. O problema é que, por protagonista, muita gente entende como "único personagem importante". E aí temos aquele protagonista superexplorado, que se envolve em todos os eventos da trama e resolve tudo praticamente sozinho. Esse talvez seja o principal motivo pelo qual a maioria das histórias de super-heróis nunca me atraíram.
Quando temos histórias com mais de um personagem relevante, a importancia tende a se dividir um pouco. Mesmo que exista um personagem levemente mais importante que outros, ele não é o único ser tridimensional vagando pela trama e, caso ele seja insuportável, posso tentar ignorá-lo sem perder outras vertentes.
Dessa forma, as histórias de super-heróis que utilizam-se desta fórmula tornam-se mais atraentes para mim. Vide "X-Men" e "As Tartarugas Ninjas". Ou mesmo "Power Rangers" e "A Caverna do Dragão". Mesmo que eu não goste de um ou outro protagonista, tem outras opções dividindo os holofotes.
Mas se a história quiser apenas um protagonista, tudo bem, ainda tem salvação. Vide nosso próximo item.
2. Personagens secundários independentes:
É sempre bom que a história tenha um foco. E, claro, o foco é do protagonista e da sua missão. Mas isso não quer dizer que os personagens secundários que ele encontra em jornada precisam estar todos em stand-by esperando a chegada do herói para entrarem em cena e começarem a agir. As pessoas da vida real não são assim. Cada uma tem seus objetivos para alcançar e seus obstáculos para encarar.
Esse é um recurso difícil de ser implantado. Afinal, a trama tem uma direção pré-estabelecida e desviar-se da rota pode acabar poluindo o resultado final. Mas é aí que entra um bom trabalho de caracterização. Nem precisa ser muito detalhado. Pode ser apenas um estereótipo ou algo banal (afinal, ainda estamos falando de personagens secundários). O importante é que ele me passe a impressão de que está fazendo alguma coisa da vida além de dar conselhos ou prestar assistência ao protagonista.
Eu tenho essa sensação com os personagens secundários dos meus dois filmes preferidos: "Beleza Americana" e "Janela Indiscreta" (na verdade, eles eram meus filmes favoritos há uns quatro anos, quando me aventurei a fazer um ranking. Não sei se continuam sendo. Mas, para efeitos didáticos vamos considerar que sim).
Em "Beleza Americana", ninguém dá muita importância a Lester. Até o momento em que ele modifica seu comportamento e as pessoas a sua volta comecem a reagir a essa diferença. Mesmo assim, ele é apenas mais um dos fatores que interferem na vida deles. Já em "Janela Indiscreta", nenhum dos vizinhos de Jeff parece se interessar por ele ou pelo suposto crime ocorrido no quarteirão. Todos são bem caricatos e estereotipados, mas isso não é uma exigência para passarem no meu teste e me convencerem de que possuem uma história de vida própria.
1. Tonalidades de cinza:
Particularmente, não acho ruim quando uma história deixa claro que existe uma divisão entre o "bem" e o "mal". Também não sou do tipo que abomina quando a trama termina com um final feliz para os mocinhos. Mas me incomodam bastante os vilões que são maus apenas porque são maus. E finais felizes que são atingidos sem cicatrizes evidente. Prossigamos:
Para mim, vilões precisam ter um objetivo e um motivo para suas maldades. Pode ser que na vida real existam psicopatas e sádicos que são cruéis sem explicações racionais. E até acho que dá para se produzir boas histórias com eles. Mas, ultimamente, tenho os encarado como "preguiça intelectual". "Ah, preciso de um cara mal para minha história... mas não consigo pensar num motivo para ele agir dessa forma. Ah, quer saber? Vou falar que ele é um psicopata e pronto!"
Vilões dessa forma podem até ser toleráveis em filmes de terror ou mesmo em filmes de ação, mas em qualquer outro gênero, não dá!
O mesmo vale para os "finais felizes". Você acha que o vilão deve morrer e que os mocinhos merecem ficar juntos? Ótimo! Mas não queiram me convencer de que eles passaram por todos os conflitos da trama sem nenhum sequela. Afinal, quais foram as maldades que o vilão cometeu? Matou algum personagem secundário de quem os heróis eram próximos? Armou para que o mocinho passasse um tempo na cadeia? Fez a mocinha perder um bebê? Fez com que eles ficassem pobres? Não interessa! Ninguém passa por situações desse tipo e continua sendo a mesma pessoa de antes. E é bom que o final deixe essas feridas em aberto. (Sim, porque eu odeio epilógos com passagem de tempo. Abomino. Mas isso será assunto para a próxima semana...).
É claro que essas não são as únicas condições para eu gostar de uma história. Na verdade, mesmo que uma trama utilize todos esses artifícios, não garanto que irei gostar dela.
Afinal, existem também recursos que não suporto. E o uso deles pode acabar prejudicando minha visão em relação à obra. Esses recursos serão o tema do texto da semana que vem, quando pretendo publicar uma nova lista, desta vez com 10 itens (sim, porque as chances de erro são sempre maiores do que as de acerto). E, naturalmente, "epilogos com passagem de tempo" será um desses itens.