sábado, 28 de abril de 2012

Varrendo a sujeira para debaixo do tapete

Muita coisa muda durante um processo de produção. Ideias surgem e são descartadas o tempo inteiro. E o resultado final costuma ser bem diferente do primeiro esboço. Isso é normal e saudável. Basta procurar qualquer entrevista em que autores e produtores discutem suas obras para perceber o quanto aquela história que você tão bem conhece e tanto ama poderia ter sido bem diferente.


(Eu recomendo fortemente esse exercício. Você acaba descobrindo histórias incríveis que nunca foram contadas...)

Mas às vezes a história não chega pronta ao consumidor. Ela é dividida em capítulo, episódios, séries, edições ou o diabo a quatro. E aí o autor resolve mudar algum elemento da história que já foi dividido com o público. Algo que já faz parte do "canon" e, bem ou mal, já foi aceito e digerido pelos fãs. Esse processo, que apesar de muitas vezes ser bem intencionado não costuma ser muito saudável, é chamado de Retroactive Continuity - Retcon para os íntimos.

Geralmente, são mais comuns em histórias em quadrinhos. Mas filmes e seriados também costumam ser vítima desse recurso com frequência.

Isso ocorre, na maioria das vezes, em resposta a alguma reação do público. Por exemplo: suponhamos que você faça um filme que seja grande sucesso de público e crítica. Aí, aproveitando a carona do sucesso dessa obra, você cria uma sequência que não causa o mesmo impacto. Os críticos e boa parte dos fãs do original não gostam, mas ele ainda rende uns trocados. Por que não fazer uma trilogia?

Mas você não quer que o filme seja considerado um mero "caça-níquel" como foi o segundo. Não. Você quer recuperar o respeito da crítica e atrair novamente aqueles fãs que você perdeu. Então você tenta um produto mais ousado: mata vários personagens, cria outros novos, dá profundidade a elementos pouco explorados nos dois outros filmes e... nasce então um desastre completo. Aparentemente, ninguém gostou do terceiro filme. Nem os críticos e muito menos os fãs. Aí restam três saídas:

a) Continuar insistindo em uma quarta parte, que dê sequencia aos acontecimentos do último filme.
b) Reconhecer o fracasso e abandonar de vez esse projeto
c) Um Reboot. Recomeçar a mesma história do zero.

Os que assinalam a terceira opção costumam se perguntar depois de um certo tempo: Por que começar do zero se o primeiro filme foi bom? E se eu apenas refizer o segundo e continuar a partir daí.

E esse novo filme é lançado ignorando completamente os acontecimentos dos últimos dois capítulos. Os personagens que morreram não estão mais mortos. Os personagens novo que surgiram nunca existiram. Então, críticos e fãs que abandoram o barco por causa do segundo filme, podem se aproximar! Esse filme é para celebrarmos os velhos tempos!

O que acontece depois não importa, mas os poucos fãs que continuavam a acompanhar a série após o terceiro filme vão se sentir traídos.

Tudo bem. A indústria do entretenimento é uma indústria e precisa gerar capital. E, deste ponto de vista, faz sentido sacrificar a lealdade de meia dúzia para conquistar uma fatia maior de mercado. É o ciclo da vida. Mas vamos fingir por um momento que os produtores destas obras estão mais interessados em nossa diversão do que em nosso dinheiro.

Eu penso que, a partir do momento que você publica algo, esse algo deixa de ser apenas "sua produção". É claro que você ainda tem o controle sobre os rumos que ela deve tomar daqui para a frente, mas agora ela faz parte da vida de outras pessoas. Ok, isso soou dramático demais. O que quero dizer é que outras pessoas acompanharam sua trama. E essas pessoas se envolveram, viajaram, se identificaram... cada uma a seu modo. Então você precisa ser justo com elas. Esses elementos imaginados por você agora são públicos. E seu direito de simplesmente fingir que nunca existiram foi perdido. Claro, você tem todo o direito de tentar reconquistar aquela parcela de fãs que você perdeu, mas não necessariamente passando por cima daqueles que se envolveram com o fracassado "terceiro filme" e que aguardam saber como esses acontecimentos se desenvolveram na quarta parte.

Mas o que eu penso vale menos que uma laranja podre. Os retcons estão aí, firmes e fortes, vão continuar existindo em todas as suas variedades. Sim, pois esse exemplo que eu dei não é a única forma de se aplicar esse recurso. Tem aqueles "retcons" que tentam parecer mais "honestos" fazendo uso de viagens no tempo e afins. Existem aqueles que modificam elementos tão pequenos que só uma análise mais detalhada seria capaz de diagnosticá-los. E, para dizer que eles não são de todo ruim, alguns retcons são aplicados para extinguir possiveis ambiguidades ou contradições.

Esses últimos são toleráveis, mas, no geral creio que retcons devam ser desencorajados. E se as minhas palavras não forem o bastante para te convencer, passo o microfone para Annie Wilkes (Kathy Bates), a fã sádica e maluca de Louca Obsessão (Misery):

http://youtu.be/JZ2jFWZO0JY



Ela pode até ter uns dois ou três parafusos soltos. Mas nesse ponto ela tem razão.

Enfm, crianças, resumindo a aula de hoje: Retcons são injustos e devem ser evitados. Ou Annie Wilkes amassará seus pés com uma marreta.

***
PS: Voltando um pouco para aquele teste aplicado após o "lançamento" daquele suposto terceiro filme que arruinou a série toda. Qual seria, na minha opinião, a melhor opção?

Depende muito da situação que se chegou. Pessoalmente, eu tentaria consertar as falhas num quarto filme. Se não houvesse saída, a aposentadoria da série seria a melhor saída. Um reboot completo só seria viável, na minha visão, muitos anos depois do último lançamento. Mas claro, estamos ignorando toda a indústria papa-níquel que existe por trás dessas produções e que, na maioria das vezes, está pouco se lixando se a história faz sentido ou não. Contanto que o dinheiro continue caindo na conta, é claro.