Domingo, meio-dia em ponto. A família está toda em volta da mesa, degustando a sublime macarronada preparada pela avó. A conversa seguia normalmente, girando pelos tópicos de sempre: política, futebol, cinema, música e literatura. Era assim todos os domingos, fizesse chuva ou fizesse sol. A culpa era do avô o sistemático senhor gordo, de 63 anos, e com alguns poucos fios brancos na cabeça, sentado em uma das pontas da mesa. Gostava de ter a família por perto. Pensava que, assim, poderia controlá-los e evitar que fizessem algo errado. Pensava ele conhecer todos os segredos daquelas dez pessoas sentadas à mesa. Ele ficaria surpreso em saber que não.
O próprio avô guardava um segredo que nem mesmo sua esposa, com quem era casado há 35 anos, desconfiava. Aos 25 anos, ele matara seu melhor amigo. O caso causou grande comoção na pequena cidade onde viviam, mas nunca foi solucionado. O avô nunca confessou o crime. Para ninguém. Continuou amigo da família da vítima, consolou os pais do falecido e ajudou a pagar as despesas do funeral. O motivo, só ele e a vítima sabiam. Nenhum dos dois pensava em contar.
Ao seu lado direito, santava-se sua bondosa e leal esposa. 60 anos, cabelos curtos e tingidos de louro, tentando imitar a cor original da época da juventude. Fazia parte da administração da igreja do bairro desde muito nova. O padre, um amigo de infância, confiava cegamente a ela o dinheiro de doações que a paróquia recebia. Ele nunca conferia a quantia. Se o fizesse, daria pela falta de um generoso montante todo mês. Aquela doce e risonha senhora, porém, jamais revelou a ninguém que parte do dinheiro gasto com os tomates do molho daquela macarronada deveria ser destinado a ajudar crianças desabrigadas.
Logo à sua frente, do lado esquerdo do velho, sentava-se a filha mais velha do casal. 42 anos, cabelos louros na altura dos ombros. O formato do rosto era igual ao da mãe, mas a cara fechada tinha herdado do pai. Nunca contou a eles sobre o aborto que fez aos 16 anos. Uma amiga ajudou a esconder a gravidez nas oito semanas que esta durou. Ninguém mais soube. Nem o pai da criança, muito menos o seu marido atual.
O marido dela, aliás, sentado ao seu lado, também fora responsável pela interrupção de uma gravidez no passado. Ele era apenas um jovem de 22 anos quando numa noite, após muita bebida, dirigia de volta para a casa em alta velocidade. Em dado instante, literalmente passou por cima de uma mulher que atravessava a rua. Ela morreu na hora. O feto que carregava no ventre há 5 meses também. O motorista assustado, fugiu. 23 anos se passaram e ele nunca falou sobre isso com ninguém. Outro caso sem solução.
Ao seu lado sentava-se sua filha de 20 anos. Ela, assim como todo mundo, não sabia das experiências vividas pelos seus pais. Se soubesse, talvez pediria ajuda para saber o que fazer com a criança que parasita seu útero há 6 semanas. Porém preferiu não revelar a ninguém. Nem familiares, nem amigos e nem ao pai da criança. Talvez por não ter bem certeza de quem é o pai da criança. Ela ainda não sabe se deixa as coisas como estão ou se opta pela mesma alternativa que da mãe. por enquanto, não tinha planos em ser atropelada.
O irmão dela de 18 anos era quem completava esse lado da mesa. Deliciava-se com o macarrão da vovó da mesma maneira que abusava das mais variadas bebidas alcoólicas nas festas da faculdade. Não conseguia enrolar o macarrão no garfo com a mesma facilidade que enrolava um baseado. Mas claro, por mais que vomitasse todo o coquetel que se misturava no estômago, essas experiências ele nunca deixava escapar.
Do outro lado da mesa, à esquerda da avó, sentava-se sua filha mais nova. Era praticamente um versão mais nova da mãe. Tinha 40 anos e longos cabelos compridos. Apesar de ser a mais falante e menos discreta da mesa, preferiu nunca contar a ninguém sobre as experiências que tinha quando ia dormir na casa de sua melhor amiga na época do colegial. Embora hoje tivesse vergonha daquele tempo, já se pegou pensando no corpo moreno, magrelo e macio daquela estudante (hoje uma veterinária solteirona - com quem mantém pouco contato) ao transar com o marido.
O marido, aliás, talvez tenha parcebido esse descaso da esposa. Tanto que, ultimamente tem ficado no escritório até depois do expediente. Sua dedicada secretária fica esse tempo todo ao seu lado. Nada mais natural que ele retribua esse eficiência dando-lhe uma carona. E ela, muito educada, sempre o convida para entrar. Para não fazer desfeita, ele aceita. Essas visitas dificilmente duram menos do que duas horas. Mas ele prefere não dizer nada a ninguém. A culpa para sua demora em chegar em casa é sempre do trabalho e do trânsito.
Sua filha mais velha, 18 anos, sentada ao seu lado, ainda não contou a ninguém sobre a nova tatuagem que fez nas costas sem consultar os pais. Um coração com suas iniciais e a do namorado. Provavelmente terá de dar algumas explicações durante as próximas férias que passarem na praia, mas essa é a menor de suas preocupações. A garota teme mesmo é dar explicações sobre os inúmeros hematomas espalhados pelo seu corpo, causados por aquele a quem ela dedicou metade de sua nova tattoo. Ela espera que, até lá eles tenham sumido. E que o namorado não a presenteie com novos.
Na sequência, a outra filha do casal. Uma garota de 15 anos, bastante esperta e inquieta. Passou a semana toda falando sobre a festa que sua colega de escola deu. Falou sobre a piscina e a quadra de vôlei. Mas não contou para ninguém sobre o pai da amiguinha e os elogios que ele fez ao seu corpo adolescente coberto apenas por um biquini amarelo. Nenhuma palavra sobre ela ter deixado ele passar as mãos sobre suas pernas. Ela acha melhor ninguém saber que ele ainda a telefona. Ela só espera ser convidada de novo no ano que vem.
Por fim, na outra ponta da mesa, frente a fente com o avô, o caçula. 12 anos. Olha todas aquelas pessoas a sua volta. O avô, que sempre diz que não suporta mentiras. A avó, que lhe ensinara que mentir é pecado e que quem faz isso não vai pro céu. Os tios, que sempre diziam preferir "ser magoados com a pior verdade do que iludidos com a melhor mentira". Os pais, que sempre o elogiaram por ser "um menino sincero e verdadeiro". Os primos e as irmãs, que se orgulhavam por sempre dizer o que pensam, doa a quem doer. Enchendo-se de coragem decidiu contar:
- Eu colei na prova de matemática.
Silêncio geral. Todos olhavam para ele. Era o único "dez" que ele tivera desde que entrara no ginásio. Todos o haviam elogiado na esperança de que as boas notas continuasse. O avô até deu a ele 100 reais como recompensa. Ele, aliás, foi o primeiro a romper o silêncio:
- Que coisa feia, hein? Escondendo uma coisa assim de nós? A sua família! Sem contar que, no meu tempo, criança que era pega colando apanhava do professor na frente da sala toda. Que decepção.
A avó, os tios e os pais seguiram pelo mesmo caminho. Criticaram-no pelo ato e por ter guardado a mentira por todo esse tempo. Os primos e as irmãs ficaram quietos. Certamente já haviam colado em várias provas, mas não queriam se tornar vítimas dessas broncas todas. Apenas complementavam o que os mais velhos diziam e balançavam a cabeça em tom de desaprovação.
Ao ver que o neto estava prestes a chorar, o avô interveio:
- Tudo bem, pessoal. Acho que ele aprendeu a lição. Você não vai fazer mais isso, vai?
- Não, vô.
- E você não vai mais esconder nada da gente, vai?
- Não...
- Então vamos para a sobremesa.
E nenhum outro segredo foi revelado aquela tarde. O neto mais novo apenas respirou aliviado e pensou: "Ainda bem que não falei nada sobre o hamster."