Talvez você costume tomar sorvete de vez em quando. é doce, ajuda a refrescar no calor, possui uma boa variedade de sabores e pode ser combinado com outros tipos de guloseimas. Talvez você pense que seja seguro afirmar que você goste de sorvete. Ledo engano. Não é você quem decide se você gosta de sorvete ou não. São as outras pessoas que gostam de sorvete que avaliam se você merece ou não fazer parte das pessoas que gostam de sorvete ou não.
Alguém declarou gostar de sorvete, essas pessoas surgem do nada, brotadas da terra, cagando regra de como um Verdadeiro Apreciador de Sorvete™ deve apreciar seu sorvete. Gosta de sorvete de chocolate? um Verdadeiro Apreciador de Sorvete™ não gosta, porque é um sabor muito popular. Prefere sorvete de morango? Sacrilégio! Eles usam sangue de boi como corante, é claro que isso não é sorvete de verdade. Baunilha? É para os iniciantes. O Verdadeiro Apreciador de Sorvete™ escolhe sabores mais exóticos, com mais personalidade. Gosta de cereja ou castanha no sundae? Sabia que era só um poser tentando se passar por um Verdadeiro Apreciador de Sorvete™.
Na verdade, é raro encontrar esse fiscais do gosto alheio na área gastronômica, embora, por algum motivo, muita gente se ofenda quando você coloca ketchup na SUA pizza ou pede para tirar o picles do SEU BigMac. Mas nas outras áreas a coisa fica mais evidente.
Música, por exemplo. Taí um assunto que desperta paixões e ódios em praticamente toda vez que é foco de uma discussão. Aparentemente, ninguém consegue definir como um Verdadeiro Apreciador de Música™ deve se portar. Então, geralmente, eles limitam tudo a um único estilo. Aquele estilo é Música de Verdade. O resto nem música é. E mesmo dentro desse estilo, existe uma hierarquia de bandas, conjuntos e cantores. As bandas que eu, um Verdadeiro Apreciador de Música™, gosto são aquelas que definem o que é Música de Verdade. Se alguém gosta daquelas bandas que eu não suporto, fica claro que essa pessoa não entende nada de música e não é, nem de longe, um Verdadeiro Apreciador de Música™. (E, claro, um auto-intitulado Verdadeiro Apreciador de Música™ vai enxergar a coisa de maneira invertida).
Mas não basta apenas "gostar" das bandas que fazem Música de Verdade. Você precisa provar que gosta mesmo, saca? Porque senão qualquer um pode simplesmente dizer que gosta daquela banda só para ganhar a carteirinha do clube e desfrutar dos privilégios que só um Verdadeiro Apreciador de Música™ deveria ter direito. E ninguém quer que isso ocorra, não é mesmo? Então, se você gosta mesmo da banda X e quer ser tratado como um Verdadeiro Apreciador de Música™, trate de decorar todas músicas, toda discografia e todos os detalhes mais banais das vidas de seus integrantes - de todas as infindáveis formações que a banda teve. Essa é a única maneira de separarmos o joio do trigo.
Nós ainda não perdemos a mania de rotularmos as pessoas - e a nós mesmos. Todo mundo quer pertencer a um grupo e, se for um grupo que possua os mesmos interesses que você, melhor ainda. Mas, ao mesmo tempo, não queremos que qualquer um tenha o privilégio de pertencer a esse grupo. Dependendo de quem for, pega mal. Um Verdadeiro Apreciador de Cinema™, por exemplo, daquele que idolatra os clássicos do cinema mudo ou o filme-iraniano-em-preto-e-branco-que-retrata-os-horrores-da-guerra-sob-a-óptica-de-uma-criança da vez, não quer ser colocado no mesmo saco que a adolescente de 15 anos que diz amar cinema, mas que só assiste aos filmes comerciais do momento (isso se o ator principal for bonitinho). Porque ele não quer que o Verdadeiro Apreciador de Cinema™ seja personalizado naquela menina. Então ele prefere estabelecer um sistema de castas para separar as pessoas que vão ao cinema, na qual ele, o Verdadeiro Apreciador de Cinema™, está no topo. Já a menina, que nem ao menos sabe quem foi Charles Chaplin, fica na base da pirâmide, junto àqueles que medem a qualidade de um filme pelo número de explosões ou pela quantidade de peitos desnudos que aparecem na tela. São pessoas que até vão ao cinema, dizem gostar de filmes, mas não pelos motivos "certos". Nenhum deles é um Verdadeiro Apreciador de Cinema™ como eu.
Nenhum deles vai perder tempo explicando por que as regras são assim. "São assim por que alguém me disse que são assim e eu acreditei. Passei anos da minha vida moldando meu gosto pessoal para se encaixar nesse padrão que, agora que finalmente consegui, não acho justo que alguém consiga o mesmo status que eu sem precisar fazer esse mesmo sacrifício".
Gosto pessoal não serve como indicativo de inteligência (aliás, não é como se inteligência fosse algo fácil de ser definido). O cara que conhece toda a obra de Mozart pode se enrolar todo tentando resolver equações matemáticas básicas. A menina que suspira lendo Crepúsculo ou Cinquenta tons de cinza pode ter grande facilidade em entender conceitos de química avançada. O fato de alguém gostar de ler Dostoiévski indica apenas isso: que a pessoa gosta de ler Dostoiévski. Quando perguntamos por que a pessoa gosta de ler Dostoiévski é quando começamos a ter respostas mais indicativas sobre a personalidade do indivíduo. Talvez ele tenha interesse em ter uma ideia de como era a vida na Rússia do século XIX. Ou então um professor indicou Crime e Castigo numa aula da faculdade. Ele leu, gostou e foi atrás de mais. Pode ser que ele leia apenas porque quer ser considerado um Verdadeiro Apreciador de Literatura™ - e alguém o convenceu de que ler Dostoiévski faria com que ele atingisse essa meta.
As pessoas gostam de coisas diferentes por motivos diferentes. Não existem motivos certos ou errados. Se você gosta de alguma coisa, vai lá e curte. Quando alguém vier dizer que aquele não é o jeito certo de curtir aquilo ou que quem curte aquilo é idiota, manda se foder.