sábado, 31 de dezembro de 2011

Ano novo, vida velha

Obs: Texto originalmente escrito - e publicado no meu outro blog, hoje falecido - em dezembro de 2006.

Tudo pronto para a ceia. Dona Nicota tirava do forno o peru que não fora usado no Natal e o colocava na mesa. Lídia, sua filha divorciada, terminava de varrer a sala. Aos poucos, os familiares que elas haviam visto há uma semana, começaram a chegar.

Silvana, a outra filha de Nicota, chegava com Marcelo, seu marido rico, a quem todos tratavam de dr. Marcelo, mesmo que ele não fosse doutor em nada. Sua filha adolescente, Gabriela, tinha cara de poucos amigos, evidentemente porque queria estar na boate da cidade, onde segundo ela, todos os seus amigos estariam. Já o filho mais novo do casal, Miguel, parecia mais animado. Trazia consigo um laser que ganhara do pai no natal e que, de cinco em cinco minutos apontava para o rosto da irmã, aumentando consideravelmente seu já assustador mau-humor.


Roberto, também filho de Nicota, apareceu com sua esposa Margarida e dois de sues três filhos: o mais velho, Maurício, tinha ido passar o Reveillon na praia com os amigos. Cíntia, a filha do meio, morrendo de inveja do irmão, não tinha uma cara melhor que a de Gabriela. Sentou-se no sofá ao lado da prima e começou a mandar mensagens de "Feliz Ano Novo" para os amigos pelo celular. Logo em seguida Gabriela começou a fazer o mesmo, parecendo até que as duas estavam fazendo um número de dança sincronizada. Mauro, o filho mais novo, seguia Miguel, pedindo a toda hora para brincar com o laser.

Pouco depois, chegaram Luciana e Bernardo, amigos de Lídia que foram convidados a passar o ano novo com eles.

- Agora que já chegou todo mundo - começou Roberto - será que eu posso atacar essa lasanha?

- Tenha modos querido!- respondeu Margarida chocada - você sabe que só poderemos comer depois da meia-noite.

- Ainda não chegou todo mundo - disse calmamente dona Nicota

Todos olharam espantados para a velha.

- Chegou sim, mamãe - disse Lídia tentando contornar a situação. - acho que a senhora se esqueceu que o Maurício não vem...

- Não, não - respondeu Nicota - estou falando da minha irmã Antônia.

Os três filhos trocaram olhares. Tia Antônia havia falecido há dois anos. Eles tinham certeza disso.

- Será que ela endoidou de vez? - cochichou Silvana.

- Não vamos mais tocar nesse assunto - sugeriu Lídia - assim ela esquece.

O papo seguiu-se sem que tia Antônia fosse mencionada de novo. Eis que a televisão anuncia que falta apenas um minuto para a meia-noite. Nos dez ultimos segundos, a família toda fez a contagem regressiva. Após todos se cumprimentarem, Roberto lembrou:

- Hora da ceia, pessoal!

- Ainda não! - dona Nicota surgiu repentinamente da porta da cozinha fazendo com que o filho quase enfartasse tamanho foi o susto. - Ninguém come enquanto Antônia não chegar.

- Mas já é meia-noite, dona Nicota - respondeu Marcelo.

- Na verdade, ainda não - dona Nicota mantinha uma calma invejável - esqueceu-se que estamos no horário de verão?

Todos se olharam espantados. Lídia foi a primeira a se recuperar:

- Oh, mamãe! Me esqueci de avisar - mentiu - Tia Antônia ligou avisando que não poderia comparecer. Mas ela lhe deixou um beijo e te desejou um feliz ano novo.

- Pois eu não me lembro de ter ouvido o telefone tocar.

- É por que ela ligou no meu celular.

- E desde quando Antônia sabe o número do seu celular? Nem eu mesma sei!

Todos perceberam que não adiantava mentir. O jeito seria dizer à velha que a irmã não pertencia mais a esse mundo e que essa espera seria em vão.

- Escuta mamãe - começou Silvana - sei que é difícil mas...

Ding Dong.

- Deve ser ela - exclamou Nicota - Não fique aí parada Lídia! Vá atendê-la.

Contrariada, Lidía foi até o portão crente de que fossem crianças desejando um "bom pricípio de ano novo" com a intenção de faturar alguns trocados.

Ao ver quem era no entanto, Lídia gelou.

- Que é isso menina? - perguntou a mulher do outro lado do portão - parece que viu um fantasma!

- T-tia Antô-tônia?

- Para que o espanto? Nicota não avisou que eu vinha?

- Sim... mas...

- Espero que ela não se importe, mas trouxe meu filho Rubens comigo. Você se lembra dele não?

- C-claro. - Respondeu Lídia. Em seguida, ela se recuperou - Entrem, estão todos na sala.

Lídia fez menção em acompanhá-los, mas logo um carro estacionou à frente da casa com toda a velocidade. Ela sabia muito bem quem estava dirigindo.

-Meu amooor.... - o homem que saiu do carro dizia com uma voz de bêbado - me perdoa meu amooor!

- Pelo amor de Deus, Gregório! - dizia ela ao ex-marido. Em seguida, disse para si mesma - Essa noite vai ser longa...

Quando viram Antônia entrar na sala, a reação dos convidados não foi muito diferente da de Lídia. Apenas Nicota reagiu normalmente cumprimentando a irmã e Rubens.

A noite foi realmente longa. Lídia teve que cuidar do ex-marido, pois do jeito que estava, não conseguiria voltar para a casa (na verdade, ela nem imaginava como ele conseguiu chegar vivo até a casa dela). A presença de Antônia começou a ser aceita aos poucos. Rubens conversava com Luciana e Bernardo, com quem descobriu ter alguns amigos em comum. Miguel finalmente deixou Mauro brincar com seu laser, mas logo depois, o primo quebrou o objeto e os dois começaram a brigar. Marcelo e Margarida foram apartar. Gabriela aproveitou-se da situação e fugiu para a boate, levando Cíntia consigo.

Assim que conseguiram, Silvana e Roberto foram esclarecer o mistério da noite com dona Nicota.

- Mamãe - começou ela - Uns dois anos atrás, eu, aliás, todos nós fomos ao enterro de uma tia que com certeza se chamava Antônia...

- E agora - interrompeu Roberto - ela está ali sentada bebendo vinho e conversando com a minha mulher. O que significa isso?

Dona Nicota sorriu.

- O pai de vocês - começou a velha - também tinha uma irmã chamada Antônia. E foi ela que morreu dois anos atrás.

Os dois se olharam espantados e a velha continuou:

- Fico surpresa em saber que vocês não conhecem os membros de sua própria família...

***
Nota do autor: Tá bom, eu adimito. Só publiquei esse texto porque dezembro está acabando e eu ainda não tinha publicado nada esse mês. Até pensei em fazer alguma espécie de balanço (coisa que todo mundo faz nessa época), mas, sinceramente, não estou nesse clima. Ainda não caiu a ficha que 2011 tem só mais algumas horas de vida. Então me lembrei dessa história e decidi republicá-la. No melhor timing possível.

Sobre a trama em si, não sei muito o que dizer. Dá para ver que meu estilo não mudou muito de cinco anos para cá. Continuou com a mania de escrever sobre situações que beiram o absurdo usando situações convencionais como plano de fundo. Também não perdi o vício de introduzir mais personagens do que o necessário, da mesma forma que não aprendi a concluir o conto de maneira satisfatória.

Quando leio uma história minha, não consigo me despir do papel de autor. Sempre passo os olhos escaneando erros e possíveis plotholes - fico meia hora depois tentando encontrar meios de consertá-los. Eu nunca as enxergo como histórias, mas como projetos. No entanto, os cinco anos que passei sem ler "Ano novo, vida velha" serviram para criar esse afastamento. E hoje, pude relê-la apenas como leitor.

Por conta disso, decidi republicá-la da maneira que foi escrita. Seria como alterar um texto que não é meu. Mesmo sendo.

De qualquer forma, olhando de fora, concluo que a história tem bem mais personagem do que precisava. Se fosse reescrevê-la hoje, eliminaria o casal de amigos e o filho da tia pseudo-falecida. Trabalharia melhor as personalidades dos familiares. Algumas nuances até que foram expostas, mas faltou um pouco mais para caracterizar o ambiante. E, definitivamente, a história poderia viver tranquilamente sem aquela piada horrível sobre o horário de verão.

Por outro lado, eu gosto da ideia toda. Acho que todo mundo percebe a sensação de felicidade forçada que exite nessa época do ano. O Natal costuma ser mais explorado para esse tipo de enredo, mas para mim, o Ano Novo não fica muito atrás. Acho que para muita gente o Ano Novo não é uma festa tão familiar quanto o Natal então talvez não role tanta identificação. Mas, no meu caso, o Ano Novo sempre foi uma edição redux do Natal.

Acho interessante que a história da a entender que essa reunião é mais para os adultos se divertirem do que as crianças e os adolescentes. Provavelmente não tenha sido minha intenção quando escrevi isso, mas hoje consigo ver claramente essa característica (e detesto admitir, mas isso reflete em parte um pouco de experiência pessoal).

Apesar de achar o final decepcionante - finais são sempre difíceis e, até hoje, ainda não aprendi a lidar com eles - gosto da reviravolta que ele proporciona: passamos a trama toda questionando a sanidade mental de dona Nicota, mas, no fim, eram os filhos dela quem estavam fazendo confusão.

(Mas, convenhamos, quase todo mundo deve ter uma Tia Antônia, não? Aquele parente distante, que você não vê a anos e não lembra mais se ainda está vivo?)

E o que era para ser apenas uma repostagem acabou virando um post por si só. Se você aguentou ler tudo até o fim (história + comentários), feliz 2012.

PS: Tenho planos para o blog em janeiro! E não envolvem republicações!