segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Futuro do pretérito

Acordou, como sempre, às seis horas da manhã. Entrou no banheiro e deu sequência à sua rotina matinal. Ao terminar de escovar os dentes, sua esposa apareceu na porta com um sorriso encantador. O mesmo sorriso que o encantara a quinze anos quando a viu pela primeira vez naquela festa no apartamento do Joca.

- Parabéns, meu amor - disse ela dando-lhe um beijo e um forte abraço.
- Oh! - exclamou ele - tinha até me esquecido.

Na verdade, ele se lembrara muito bem que aquele dia era seu aniversário. Trinta e cinco anos. A mesma idade que seu pai tinha quando ele nasceu.

- Precisamos comemorar. - continuou a esposa - A Bete me falou de um restaurante que abriu no centro...
- Não sei se estou para comemorações. - interrompeu ele.
- Por que não?

Não soube responder. Fez apenas uma careta e torceu para que sua expressão traduzisse aquilo que não saberia explicar com palavras. A esposa riu.

- Deixa de bobagens! Não podemos deixar a data passar em branco. Essa noite vamos ter um jantar especial sim.

Ele não discutiu. Não queria discutir. Se era um jantar que ela queria, um jantar ela teria. Deu-lhe outro beijo e seguiu para a cozinha. Tomou uma xícara de café e comeu duas torradas. Terminou-se de se vestir e desceu até a garagem. Enquanto ligava o carro, ia pensando no trabalho. "Preciso terminar o relatório"; "Tenho que entrar em contato com os estrangeiros hoje, sem falta!"; "Será que consertaram a máquina de café?"

Ligou o rádio para ouvir as notícias locais. Assalto a um supermercado na Avenida Brasil. Uma mulher morta pelo ex-marido. Um caminhão tombado provocava engarrafamento na rodovia.

- Só tragédia! - reclamou enquanto mudava de estação.

Parou em um semáforo. Olhou para o carro ao lado. Uma mulher com três crianças uniformizadas. Provavelmente levava-as para a escola. "Quantos anos faz que não vou mais à escola?", pensou. Assustou-se ao deduzir que, em seu último dia de aula, aquelas crianças ainda nem haviam nascido.

Uma senhora tentava atravessar a rua, mas uma moto avançou no sinal vermelho e quase a acertou. A falta de respeito do cidadão chocou as testemunhas. Quando o semáforo abriu, ninguém mais pensou no assunto.
O aniversariante chegou finalmente ao seu local de trabalho. Parou o carro onde sempre costumava parar e entrou no prédio. Cumprimentou as duas secretárias que ficavam na recepção e subiu as escadas.

Dirigiu-se até sua sala e começou a remexer nos papéis que ainda estavam sobre a mesa. Não teve muito tempo para fazer nada. Alguém bateu na porta e pediu licença para entrar. Após consentir, praticamente o escritório todo estava dentro de sua sala. Foi um festival de "parabéns", "felicidades", "feliz aniversário" e todos os outros votos que se costuma receber quando fica mais velho. "Se fosse depender da boa vontade dessa gente, acho que esse seria meu único dia feliz do ano", pensou ele enquanto dava um sorriso amarelo.

Depois de dar atenção a todos e responder a perguntas como "quantos anos?" e "vai ter festa?", a multidão se dispersou, com a promessa de encomendarem um bolinho e comemorarem no fim da tarde.

- Ninguém consegue escapar do próprio aniversário! - exclamou segundos antes do telefone tocar. Era sua mãe desejando-lhe feliz aniversário e avisando que ela e o pai passariam na casa dele mais tarde.
- Mas eu e a Elisa combinamos de jantar fora essa noite...
- Então vocês passem aqui em casa antes de irem. - decretou a mãe - até parece que vou ficar sem ver meu filho no dia do aniversário dele! A propósito, seu irmão já te ligou cumprimentando? Se aquele bandido não te cumprimentar...

Para alívio da senhora, o bandido ligou sim. Aliás, não só ele. Familiares, amigos e conhecidos encontraram sua maneira de felicitá-lo. Alguns por telefone, outro via internet.

A festa no escritório foi bem rápido. Todos os empregados se reuniram em volta de um bolo que alguém encomendou na padaria da esquina, cantaram "Parabéns a você" e tiveram um breve momento de confraternização. Agora faltava apenas a visita à mãe e o jantar com a esposa.

- Depois, só ano que vem! - disse a si mesmo enquanto voltava para a casa.

A visita aos pais foi mais demorada do que o casal calculara. A velha senhora não queria deixar o filho e a nora irem embora tão fácil. Introduzia os mais diversos assuntos. Seu plano era fazer com que eles ficassem para o jantar. O pai apenas continuava esticado no sofá acompanhando o telejornal. Sabia qual era a intenção da esposa e apenas observava a mulher agir.

Mas a nora não era nenhuma principiante. Conseguiu retomar o controle da situação e arrastar o marido para fora da perigosamente acolhedora casa da mamãe. Nada arruinaria seus planos para aquela noite. Bete havia falado maravilhas sobre aquele restaurante. Eles serviam até lagosta! E a ocasião certamente merecia uma lagosta.

O aniversariante tinha de admitir: a noite estava sendo inesquecível. Lagosta, vinho e um grupo tocando violino. Jantar a luz de velas. E a esposa ainda prometia que a noite não terminaria ali.

- Isso é um aniversário ou uma lua-de-mel? - riu ele.

Elisa apenas sorriu.

***

Ela não estava mesmo mentindo. Na manhã seguinte, ele não conseguia esquecer de tudo o que se passou. "Que tipo de filme ela anda assistindo?".

Seis da manhã. Acorou e dirigiu-se ao banheiro. Quando terminava de escovar os dentes, sua esposa apareceu na porta. Ele sorriu e fez menção de dizer alguma coisa a respeito da noite anterior, mas ela foi mais rápida:

- Parabéns, meu amor! - disse ela dando-lhe um beijo e um forte abraço.


Ele não entendeu nada.

- Como é?
- Esqueceu-se de que dia é hoje, querido? - respondeu ela - Precisamos comemorar! A Bete me falou de...
- Você só pode estar brincando!
- O que houve? - perguntou a esposa preocupada - você quer comemorar seu aniversário?

Ele apenas riu.

- Um aniversário por ano já está mais do que bom.
- Do que você está falando?
- Que meu aniversário foi ontem. E ele já foi comemorado!
- Deixa de bobagens! Não podemos deixar a data passar em branco. Essa noite vamos ter um jantar especial sim.


Ele olhou a mulher estranhamente, como se tentasse encontrar algum traço no rosto dela que indicasse que aquilo não passava de uma brincadeira. Mas a expressão dela era séria.

- Tudo bem. - disse ele entrando no jogo dela - quando voltarmos do trabalho a gente decide isso.

Os dois se beijaram e se dispersaram. Ela foi para o chuveiro e ele para a cozinha, onde tomou uma xícara da café e comeu duas torradas. De lá, seguiu para a garagem e entrou no carro.

- O que será que ela tem? - perguntou-se sobre a esposa enquanto ligava o rádio.

O rádio dava as notícias locais: Assalto a um supermercado na Avenida Brasil. Uma mulher morta pelo ex-marido. Um caminhão tombado provocava engarrafamento na rodovia.


Ele parou e ficou observando o rádio.

- O que será que eu tenho!

A situação não melhorou quando ele parou no semáforo e observou o carro ao lado: a mesma mulher e as mesmas três crianças do dia anterior.

- Não é possível! Eu devo estar sonhando!

Lembrou-se daqueles inúmeros filmes que assistira, nos quais o protagonista ficava preso em um dia de sua vida e era obrigado a revivê-lo por toda a eternidade. Temia que aquele fosse seu destino a partir de então.

- Relaxa, Rubéns! - dizia a si mesmo - deve existir uma explicação plausível para isso. Acho que é aquele negócio de "dejavu" ou seja lá o que for...

Enquanto teorizava, uma senhora quase era atropelada por uma moto.

- Isso não pode estar acontecendo, não pode... - ia repetindo o caminho todo.

No escritório, a situação não foi diferente: seus colegas apareceram para cumprimentá-lo, sua mãe ligou em seguida. Depois seu irmão e os outros. O expediente terminou com o mesmo bolo e o mesmo "Parabéns a você".
Ao chegar em casa, tentou explicar para a esposa o que estava acontecendo com ele. Ela, não acreditou.
 
- Eu posso provar! - dizia ele - se quiser, posso narrar toda a conversa que teremos na casa da minha mãe!
- Rubéns, você não está bem. Tem certeza que não quer ver um médico?
- Será que você poderia confiar em mim?
 
Elisa suspirou. Abraçou o marido e decidiu dar a ele um voto de confiança. Enquanto dirigiam-se à casa da mãe, Rubéns narrava tudo o que se passaria naquele encontro.
 
A semelhança surpreendeu a mulher. Todos os assuntos abordados pela sogra, bem como as reações do sogro haviam sido previstos pelo marido com uma precisão absurda. Ao saírem de lá, ela perguntou:
 
- Você não combinou esse teatro todo com os seus pais, combinou?
- Por que eu faria uma coisa dessas? - rebateu ele ofensivo - se quiser, posso narrar também o que se passará no restaurante.
 
A noite contou novamente com lagosta, vinho e violino. Mas não houve clima para a surpresa final. Até porque já não era surpresa nenhuma. Os dois apenas dormiram, com Rubéns torcendo para que ninguém lhe desejasse feliz aniversário no dia seguinte.
 
***
 
Seis horas da manhã. Rubéns foi até o banheiro, mas não fez nada. Ficou apenas esperando a esposa aparecer na porta. Quando ela apareceu, tudo o que ele pensava era "Não me deseje parabéns! Não me deseje parabéns!"
 
- Bom dia, querido.
 
Rubéns suspirou aliviado. Retribuiu a saudação com um beijo.
 
- Nada como dar sequência à vida! - exclamou ele.
 
Elisa olhou-o sem entender nada a princípio. Em seguida, algo pareceu clarear em seu cérebro.
 
- Você está falando sobre seu aniversário?
- Em partes.
- Não se preocupe - disse ela rindo - tenho planos para ele.
- Não é muito cedo para isso? - perguntou ele - quero dizer, temos praticamente um ano até lá...
 
A esposa riu.
 
- Um ano? Seu aniversário é amanhã!
 
A confusão novamente tomou conta de Rubéns. Quanto aniversários mais ele teria de fazer aquele ano?
 
***
 
Não demorou muito para que Rubéns percebesse que os dias de sua vida começaram a se repetir de trás para a frente. E a sequencia não parava. Num dia, ele estava revivendo seu primeiro dia de trabalho no escritório. No dia seguinte, ele não era mais empregado ali. Ou melhor, ainda não era empregado ali. Os dias de lua-de-mel antecederam o dia de seu casamento. A festa por sua vez, aconteceu antes de todos os preparativos. Preparativos esses que terminaram após a data da cerimônia ser marcada.
 
Sua festa de formatura aconteceu antes do curso em si. O curso, aliás, começou com as aulas mais específicas e difíceis e terminou com aquelas mais abrangentes e superficiais. Nesse meio tempo, ocorreu a festa do Joca, onde Rubéns viu Elisa pela última vez.
 
Depois veio a escola novamente, incicando-se no colegial e terminando no jardim-de-infância. Rubéns parecia ser o único a perceber que o tempo não seguia de modo correto. Tudo o que ele fazia em um dia, era sumariamente esquecido no dia anterior. Porque nessa nova realidade, o dia anterior deveria ocorrer depois do dia atual.
 
Rubéns achava estranho ver-se novamente com dez anos, quando pelo tempo cronológico que havia passado, ele já deveria ter atingido os sessenta. A situação toda proporcionava uma linha temporal bastante surreal. Por exemplo, em um dia, ele revivia o dia da morte do seu avô. No dia seguinte, porém, o velho estava vivo novamente. E a cada dia que se passava, sua saúde só melhorava.
 
Rubéns viu-se desaprender a andar de bicicleta. Viu as pessoas rejuvenecerem dia após dia. Mortos voltando a vida e recém nascido voltando ao ventre materno, onde diminuiam de tamanho mês a mês até voltarem a ser um simples espermatozóide. Ele logo começava a visualizar que aquele seria seu destino final. Teoricamente, ele tinha agora apenas cinco anos de vida. E várias questões começavam a povoar sua mente: "existe vida após o parto?"
 
No entanto, ele estava só. Ninguém mais parecia estranhar a situação toda. Pelo contrário. Ninguém se lembrava do que havia acontecido no dia anterior. Porque o dia anterior ainda não deveria ter acontecido. Da mesma forma, todos já sabiam o que aconteceria no dia seguinte. Porque o dia seguinte já aconteceu. Embora ninguém se desse conta disso.
 
Rubéns não fazia ideia do que aconteceria após sua concepção. O mundo seguiria retornando ao passado até a formação do universo? Ou algum dia o tempo voltaria a seguir progressivamente?
 
Ele agora revivia seu primeiro aniversário. Ou, considerando uma realidade mais linear, aquele era o septuagésimo aniversário que experimentava. Vários de seus amigos já havia deixado de existir. Outros tinham apenas mais alguns meses. Tinham aqueles mais sortudos, como seu irmão, que ainda tinha três anos pela frente. Ou seu pai, que levaria ainda trinta e seis anos para retornar ao ventre de sua genitora.
 
Não havia muito o que fazer, a não ser esperar. A essa altura, ninguém mais conseguia compreendê-lo. Afinal, ele era um bebê de apenas um ano que mal sabia falar. E mesmo que conseguisse explicar a situação a alguém, a pessoa já teria se esquecido da história toda no dia seguinte. Afinal, o dia anterior ainda não teria ocorrido.
 
E assim, Rubéns viveu seus últimos momentos na Terra. Curtiu ainda algumas semanas de consciência no útero de sua mãe até, finalmente,voltar a ser um mero espermatozóide que, dentro de alguns dias, nunca terá sido produzido.
 
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Ok, a história é meio doentia e a ideia nem é original. Mas deu vontade de escrever. A intenção era fazer algo mais complexo, com mais personagens e explorar melhor esse conceito de pessoas desaparecendo por deixar de nascer. Mas já são quase três e meia da madrugada e eu trabalho amanhã de manhã....